Baía da Guanabara, Caetano Veloso e Levy Strauss
Caetano Veloso escreve sobre Lévi-Strauss
Citei Lévi-Strauss nominalmente em “O estrangeiro”. Era a famosa frase depreciativa da Baía de Guanabara. Em “Tristes trópicos”, ele diz que ela “parece uma boca desdentada”. Citei-o também, indiretamente, em “Um índio” (“num claro instante”), “Tem que ser você” (“o amor-mentira” é a tradução que ele fez do modo como os nambiquaras se referem ao homossexualismo masculino praticado pelos jovens da tribo), “Fora da ordem” (“aqui tudo parece que ainda é construção mas já é ruína”) e no filme “O cinema falado”: a frase em que Luiz Zerbini diz “Picasso não é um bom pintor; por causa dele se negligenciou toda uma tradição de adestramento nos ateliês” é tirada de uma entrevista que ele deu sobre arte moderna. As outras citações vêm todas de “Tristes trópicos”, um livro extraordinário, que ficou sempre todo vivo na minha lembrança: eu o li em 1967 e até hoje não preciso nem olhá-lo para lembrar cada trecho, cada ideia.
Li também outros livros dele depois. Sempre com grande admiração. O caleidoscópio de mitos em “O cru e o cozido” é uma maravilha, mas a introdução sobre a música me marcou mais. Ele não gostava de cultura pop e não gostaria de ser citado por um cantor brasileiro, mas eu me senti sempre atraído pelo seu pensamento e seu estilo. Modestamente, me refiro a ele com familiaridade. Eu gostava também de ele ser longevo. E do jeito de ele falar, como um judeu sábio e irônico. Mas me agastava com as reações dele contra a arte de vanguarda. Embora não ache seus argumentos nesse campo propriamente desprezíveis.
Meu analista, MD Magno, diz que todo o papo de linha entre natureza e cultura traçada pela proibição do incesto é furado. Me convence. Mas Lévi-Strauss foi uma das mentes mais lúcidas e um dos estilos mais elegantes com que tomei contato em minha vida adulta. Em “Saudades do Brasil” ele fala com carinho das possibilidades de grandeza de civilizações amazônicas pré-cabralinas. Agora eu sinto que o Brasil sente saudades dele (que foi um crítico duríssimo da nossa vida “civilizada”). Fonte aqui.
http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2009/11/03/caetano-veloso-escreve-sobre-levi-strauss-237933.asp
O Estrangeiro (Caetano Veloso)
O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara
O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela
A Baía de Guanabara
O antropólogo Claude Levy-strauss detestou a Baía de Guanabara:
Pareceu-lhe uma boca banguela.
E eu menos a conhecera mais a amara?
Sou cego de tanto vê-la, te tanto tê-la estrela
O que é uma coisa bela?
O amor é cego
Ray Charles é cego
Stevie Wonder é cego
E o albino Hermeto não encherga mesmo muito bem
Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?
Uma arara?
Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara
Em que se passara passa passará o raro pesadelo
Que aqui começo a construir sempre buscando o belo e o amaro
Eu não sonhei que a praia de Botafogo era uma esteira rolante de areia branca e de óleo diesel
Sob meus tênis
E o Pão de Açucar menos óbvio possível
À minha frente
Um Pão de Açucar com umas arestas insuspeitadas
À áspera luz laranja contra a quase não luz quase não púrpura
Do branco das areias e das espumas
Que era tudo quanto havia então de aurora
Estão às minhas costas um velho com cabelos nas narinas
E uma menina ainda adolescente e muito linda
Não olho pra trás mas sei de tudo
Cego às avessas, como nos sonhos, vejo o que desejo
Mas eu não desejo ver o terno negro do velho
Nem os dentes quase não púrpura da menina
(pense Seurat e pense impressionista
Essa coisa de luz nos brancos dentes e onda
Mas não pense surrealista que é outra onda)
E ouço as vozes
Os dois me dizem
Num duplo som
Como que sampleados num sinclavier:
"É chegada a hora da reeducação de alguém
Do Pai do Filho do Espírito Santo amém
O certo é louco tomar eletrochoque
O certo é saber que o certo é certo
O macho adulto branco sempre no comando
E o resto ao resto, o sexo é o corte, o sexo
Reconhecer o valor necessário do ato ipócrita
Riscar os índios, nada esperar dos pretos"
E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento
Sigo mais sozinho caminhando contra o vento
E entendo o centro do que estão dizendo
Aquele cara e aquela:
É um desmascaro
Singelo grito:
"O rei está nu"
Mas eu desperto porque tudo cala frente ao fato de que o rei é mais bonito nú
E eu vou e amo o azul, o púrpura e o amarelo
E entre o meu ir e o do sol, um aro, um elo.
("Some may like a soft brazilian singer
but I've given up all attempts at perfection")
0 comments:
Post a Comment